As Contratações Públicas no Exterior: Análise do Artigo 186 da Lei nº 14.133/2021
As Contratações Públicas no Exterior: Análise do Artigo 186 da Lei nº 14.133/2021
Introdução
A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu novo marco regulatório para as licitações e contratos administrativos no Brasil, introduzindo dispositivo específico para disciplinar as contratações realizadas por repartições públicas sediadas no exterior. O artigo 186 da referida lei reconhece as particularidades inerentes às contratações internacionais, estabelecendo regime jurídico diferenciado que busca compatibilizar os princípios da Administração Pública brasileira com as peculiaridades locais dos países onde se situam as representações diplomáticas e consulares.
Fundamento Normativo e Abrangência
O artigo 186 da Lei nº 14.133/2021 determina que:
"As contratações realizadas no âmbito das repartições públicas sediadas no exterior obedecerão às peculiaridades locais e aos princípios básicos estabelecidos nesta Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por Ministro de Estado."
Este dispositivo aplica-se às contratações realizadas por:
- Embaixadas e consulados brasileiros
- Missões diplomáticas permanentes
- Representações junto a organismos internacionais
- Escritórios de representação de órgãos e entidades públicas no exterior
Características do Regime Especial
1. Dualidade Normativa
O dispositivo estabelece dupla vinculação normativa: observância das peculiaridades locais e dos princípios básicos da lei brasileira. Esta dualidade reconhece que a aplicação integral da legislação nacional pode ser incompatível com o ordenamento jurídico estrangeiro, especialmente em aspectos como:
- Requisitos documentais específicos
- Procedimentos de habilitação de fornecedores
- Modalidades de garantia contratual
- Formas de publicação de atos administrativos
2. Flexibilização Procedimental
A previsão de adequação às peculiaridades locais permite adaptação dos procedimentos licitatórios às práticas comerciais e jurídicas do país sede, desde que mantida a observância aos princípios fundamentais da Administração Pública previstos no artigo 37 da Constituição Federal e no artigo 5º da Lei nº 14.133/2021.
3. Competência Regulamentar
A lei atribui competência ao Ministro de Estado para editar regulamentação específica. No caso das representações diplomáticas e consulares, tal competência recai sobre o Ministro das Relações Exteriores, conforme estrutura regimental do Ministério das Relações Exteriores (Decreto nº 11.342/2023).
Princípios Aplicáveis
Independentemente das adaptações procedimentais, as contratações no exterior devem observar os seguintes princípios:
- Legalidade: conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro e respeito às normas locais imperativas
- Impessoalidade: tratamento isonômico aos licitantes, sem favorecimentos ou discriminações
- Moralidade: probidade e boa-fé na condução dos procedimentos
- Publicidade: transparência dos atos, respeitadas as formas de divulgação localmente admitidas
- Eficiência: busca pela melhor relação custo-benefício
- Interesse público: prevalência do interesse da Administração sobre interesses particulares
Aspectos Práticos da Implementação
Desafios Operacionais
A implementação do artigo 186 apresenta desafios práticos relacionados a:
-
Diversidade de ordenamentos jurídicos: cada país possui sistema jurídico próprio, com diferentes tradições legais (common law, civil law, sistemas híbridos)
-
Barreiras linguísticas: necessidade de tradução de documentos e adequação terminológica
-
Diferenças cambiais e tributárias: variações de moeda e regimes fiscais distintos
-
Acesso a fornecedores: limitações no mercado local para determinados bens e serviços
Soluções Adotadas
A prática administrativa tem desenvolvido soluções como:
- Elaboração de manuais de procedimentos adaptados por região
- Utilização de contratos-modelo bilíngues
- Estabelecimento de parcerias com outros países para compras conjuntas
- Adoção de sistemas eletrônicos de contratação compatíveis com padrões internacionais
Controle e Fiscalização
As contratações realizadas no exterior sujeitam-se ao controle interno e externo, exercido respectivamente pela Controladoria-Geral da União e pelo Tribunal de Contas da União. O TCU tem jurisprudência consolidada sobre a matéria, reconhecendo a necessidade de flexibilização procedimental, conforme Acórdão nº 1.336/2020-Plenário.
Perspectivas Futuras
A regulamentação ministerial prevista no artigo 186 deverá considerar:
- Harmonização com tratados e convenções internacionais
- Digitalização dos procedimentos licitatórios
- Padronização de procedimentos por blocos regionais
- Capacitação contínua dos servidores lotados no exterior
Conclusão
O artigo 186 da Lei nº 14.133/2021 representa avanço na disciplina das contratações públicas no exterior, reconhecendo formalmente a necessidade de adequação aos contextos locais sem abandono dos princípios fundamentais da Administração Pública brasileira. A efetividade do dispositivo dependerá da qualidade da regulamentação ministerial e da capacidade institucional de implementar soluções que equilibrem segurança jurídica e eficiência operacional.
Referências
BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm
BRASIL. Decreto nº 11.342, de 1º de janeiro de 2023. Aprova a Estrutura Regimental do Ministério das Relações Exteriores. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11342.htm
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1.336/2020 - Plenário. Relator: Ministro Benjamin Zymler. Brasília, 27 de maio de 2020.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.